Comentário à sentença do processo 0015632157 (Simulação de Julgamento) do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa


                                                                                                 Francisco Moura - 140119514

          Inicialmente, e antes de "vestir a roupa" de mandatário do autor João Relaxado, gostaria de sinceramente felicitar o coletivo de juízes da nossa simulação de julgamento de Direito da Atividade Administrativa 2020. Fizeram um trabalho francamente meritório, nas  circunstâncias atípicas de um confinamento social,  tão pouco favorável a nível de bem-estar psicológico, que se poderia ter refletido negativamente na qualidade do desempenho que tiveram, assim como sofrendo limitações de comunicação que poderiam ter prejudicado a boa preparação do trabalho em conjunto. O que não aconteceu. E estiveram muito bem, não só na audiência de simulação, como sobretudo na elaboração da sentença judicial. O mesmo gostava de dizer, e também com toda a sinceridade, a respeito da equipa de advogados e testemunhas do réu Manuel Precaução, que nos "deu trabalho" e teve sem dúvida uma prestação de inquestionável valor. Portanto, como ouvimos do nosso estimado Professor Vasco Pereira da Silva ao término da sessão, "estão todos de parabéns".

          Entretanto, se prolongarmos ainda por uns instantes o contexto da simulação, e na qualidade de mandatário de João Relaxado, gostava de analisar certos aspectos da sentença e tecer alguns comentários.

          Abordarei uma questão nuclear no caso que nos foi apresentado, e que diz respeito ao princípio da imparcialidade, no qual nos focaremos por dois motivos essenciais: Em primeiro lugar, por não se nos afigurar possível como possa constar da sentença que "não existe dúvida séria" que Manuel Precaução tenha em sua conduta violado princípio da imparcialidade. E em segundo, por ser este um dos aspectos mais relevantes do caso, no âmbito da nossa disciplina.

          Sabemos ser este um princípio fundamental de Direito Administrativo, consagrado no art. 266º nº2 da CRP e no Art. 9º do CPA, que deverá ser respeitado pela Administração Pública em todos os seus atos, para que estes sejam considerados válidos.

          Como vistas a evidenciar com maior facilidade o que pretendemos expor, recorremos em seguida à transcrição dos factos dados como provados, segundo a enumeração que consta na sentença, acrescentando algumas referências.

FACTOS DADOS COMO PROVADOS PELO TRIBUNAL

- "17.  MANUEL PRECAUÇÃO SOLICITOU A JOÃO RELAXADO A APRESENTAÇÃO DA PROVA DE PAGAMENTO DO IMPOSTO AUTOMÓVEL". Solicitou, portanto, um documento para o qual não tinha competência, que não faz parte dos documentos que são exigidos aos condutores que circulam na via pública. (art. 85º CE) sem receber qualquer ordem de superior hierárquico. Porque motivo haveria de o fazer?

- "19.  MANUEL PRECAUÇÃO COMINOU JOÃO RELAXADO AO PAGAMENTO DE UMA COIMA POR CONTRAORDENAÇÃO". - 20. "A COMINAÇÃO DEVEU-SE À NÃO APRESENTAÇÃO DA PROVA DE PAGAMENTO DE IMPOSTO AUTOMÓVEL". Ou seja, o agente Manuel Precaução aplicou uma coima pela falta do documento - que como vimos na argumentação de Direito não tinha competência para fazer -  mais uma vez sem receber qualquer ordem de superior hierárquico. Coloca-se de novo a pergunta: Porque motivo haveria de o fazer? Já por este aspecto, não nos parece fazer sentido a afirmação do tribunal de que "foi o superior hierárquico que emanou as principais ordens que viriam a lesar o particular". Não nos esqueçamos que a ordem de prisão dada pelo superintendente resultou da suposta desobediência ao pagamento da coima, coima esta para cuja aplicação o superintendente em nada concorreu.

- "10.  JOÃO RELAXADO E MANUEL PRECAUÇÃO SÃO PRIMOS". Aqui está um motivo para escusa do agente na sua atuação, segundo o disposto no art. 73º nº 1 a) do CPA uma vez que ele e o fiscalizado são primos. O "interesse" a que a mencionada norma nos refere, deve ser entendido de forma neutra, que significa que, antes mesmo de ter acontecido a contenda, pelo facto de serem primos, poderia haver interesse em favorecer ou prejudicar o primo na sua atuação, e que releva para a apreciação da imparcialidade. O referido artigo insere-se, pois, no quadro das garantias preventivas da imparcialidade.

- "11.  EXISTE UMA DESAVENÇA ENTRE ESTES RELATIVAMENTE À HERANÇA DE UMA TIA". Aqui está outro motivo de escusa para o agente atuar, agora segundo o disposto na alínea d) do art. 73º nº 1 do CPA,  uma vez que ficou provada a existência da inimizade entre ele e o fiscalizado, que dado a relevância do motivo que é a disputa de uma herança, e a atitude evidenciada pela atuação do agente durante a fiscalização, é grave.

- "13.  MANTEVE-SE A COMUNICAÇÃO ENTRE MANUEL PRECAUÇÃO E JORGE RIGIDEZ DURANTE A FISCALIZAÇÃO DO VEÍCULO AUTOMÓVEL DE JOÃO RELAXADO". Não foi dado como provado, portanto (nem neste facto nem em nenhum outro da sentença) que Jorge rigidez informou o superior hierárquico que era primo de João Relaxado, e que tinha uma desavença com este. Assim, não foi dado como provado que Manuel Precaução tenha realizado adequadamente o pedido de dispensa, nos termos do art. 73ºnº1. Por onde o superior hierárquico não poderia sequer decidir sobre a existência ou não de escusa, como disposto no art. 75º nº1, se não tinha sequer conhecimento dos motivos que levariam a tal.

- "14. O SUPERINTENDENTE JORGE RIGIDEZ ORDENOU QUE MANUEL PRECAUÇÃO PROSSEGUISSE COM  A OPERAÇÃO DE FISCALIZAÇÃO DA VIATURA, DEVIDO AO "CAOS DA SITUAÇÃO E À FALTA DE REFORÇOS" O que significa que o superior hierárquico não declarou se era ou não legítima a escusa, nos termos do art. 75º nº1,  mas deu ordem ao agente para prosseguir a fiscalização em virtude da situação de "caos da situação e falta de reforços". Dessas palavras do superintendente subentende-se que algum tipo de problema lhe tenha sido comunicado por Manuel Precaução, mas constata-se que Jorge Rigidez não mandou o agente prosseguir por ter declarado que não se verificavam fundamentos para a escusa (o superior tem de conhecer e declarar a existência da escusa, segundo o art. 75º nº1) mas antes por uma necessidade do momento. Não houve, portanto, nenhuma sanação por parte do superior hierárquico.

          Diante destas considerações, temos real dificuldade em compreender como possa o tribunal não reconhecer a existência de parcialdade na atuação do agente Manuel Precaução. Pretendemos também, respeitosamente, apontar alguma incoerência por parte do tribunal, que por um lado reconheceu como provados factos que evidenciam a atuação parcial por parte do agente, mas por outro não declarou haver este agido de forma parcial. Realidade que consideramos clara e transparente como água límpida aos olhos de qualquer pessoa clarividente. Não nos deteremos aqui em outras questões, como as relacionadas com as ordens dadas pelo superintendente e a suas consequências. Ou como o reconhecimento, por parte do tribunal, de uma prova documental de arresto proferida por um tribunal judicial, apesar de termos demonstrado a falsidade desta (por só poder esta ordem ser proferida por um tribunal tributário) ou outras ainda que também mereciam considerações.

          Assim sendo, e apesar de em vários sentidos a sentença ter sido favorável aos legítimos anseios do meu cliente (e dos outros advogados da equipa com quem tive o privilégio de trabalhar) julguei oportuno analisar a sentença à luz do principio da imparcialidade, e não deixar de salientar que houve na atuação de Manuel Precaução uma violação evidente da dimensão negativa deste princípio basilar da atividade administrativa.

          E encerro com a referência a uma passagem do saudoso Professor Freitas do Amaral, no âmbito da relação entre a Imparcialidade e a Justiça, que parece fazer todo o sentido recordar, no contexto do nosso processo. "O princípio da imparcialidade não pode ser tido como corolário do princípio da justiça, mas antes como a aplicação da protecção da confiança dos cidadãos na seriedade da Administração Pública do seu país"(*)

          Foi a frustração desta confiança que a atuação parcial de Manuel Precaução causou no meu cliente, e é por este sentimento de confiança na Administração que nos devemos sempre bater, com vistas a promover um relacionamento sadio e harmonioso entre administrados e Administração.

* DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo Vol. II, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 129

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