SENTENÇA
Procº.
0015632157
***
I – Identificação das partes e objeto do litígio
João Relaxado veio interpor a presente ação
administrativa contra Manuel Precaução, funcionário da Polícia de Segurança
Pública, no qual formula a condenação do R., nos seguintes pedidos:
a) anulação de todas as ordens emanadas por
Manuel Precaução
b) demissão dos agentes Manuel Precaução e
Jorge Rigidez
c) indemnização pelos danos sofridos
Para tanto o A., vem alegar, em síntese que:
João Relaxado deslocava-se entre concelhos
para desempenhar a sua atividade profissional e embora não estando munido de
declaração emitida e assinada pela sua entidade empregadora, é também verdade
que estava isento de apresentar qualquer declaração, nos termos do art. 6º nº2
e art. 4º do Decreto 2-B/2020.
A não apresentação da prova de pagamento do
imposto automóvel desencadeou a aplicação de uma coima. Porém o documento
pedido não foi qualquer um dos documentos previstos no art. 85º do Código da
Estrada, alegando que não existe qualquer norma legal no Código do Imposto
Único de Circulação ou em qualquer outro diploma vigente que obrigue à
apresentação do comprovativo de pagamento de imposto automóvel, logo não se
poderia instaurar a coima.
O arresto, nos termos do art. 179 nº1 do CPA e
dos arts. 136º nº1 e 214º do Código de Procedimento e Processo Tributário deve
ser requerido por um representante da Fazenda Pública que, por sua vez, tem de
alegar ao tribunal competente (disposto no art. 138º do Código de Procedimento
e Processo Tributário) os factos que demonstrem o tributo e os fundamentos de
diminuição de garantias de cobrança de créditos tributários (nos termos do art.
136 nº4 do Código de Procedimento e Processo Tributário). Assim, o agente da
PSP não tinha qualquer competência para proceder ao requerimento do arresto.
Por fim, alega ainda João Relaxado que não
incorreu num crime de desobediência, uma vez que nos termos do art. 348º do
Código Penal este requer que haja uma falta de obediência a uma ordem
legítima (e a ordem de pagamento da coima não era legítima) e que o agente
fosse autoridade competente, requisito que também não se encontra preenchido.
Mais alega o R., que:
Relativamente à circulação em estado de
emergência no período da Páscoa e, tendo em conta o art 6º do DL 2-B/2020,
João Relaxado só poderia sair do concelho se a sua profissão fosse considerada
essencial e, mesmo que assim fosse considerada, era necessária a declaração
emitida e assinada pela sua entidade empregadora. Deste modo, conclui-se que a
declaração apresentada por João Relaxado não está conforme ao exigido pelo art
6º do DL 2-B/2020, não havendo o fundamento necessário para que este pudesse
viajar para o Algarve, ainda que em trabalho.
A coima aplicada tem como fundamento o
transporte inadequado dos animais nos termos do art. 56º do Código da Estrada.
No respeitante à ordem prévia de arresto, existia
uma sentença de arresto sobre o automóvel de João Relaxado. O agente da Polícia
da Segurança Pública, Manuel Precaução, apenas cumpriu as ordens do seu
superior, Jorge Rigidez, de acordo com o dever de obediência do art 14 nº1 e
nº2 alínea b) do Estatuto Disciplinar da Polícia de Segurança Pública.
Por fim, relativamente à detenção considera
que estão preenchidos os pressupostos do art. 348º do Código Penal, pelo que o
autor incorreu em crime de desobediência.
***
II – Alegações
A. e R. foram notificados para os efeitos do
disposto no art.91º do CPTA, e vieram apresentar as alegações.
***
III – Do mérito da ação. Da fundamentação de facto e de direito
- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância e interesse para a decisão da
causa, consideram-se como provados os seguintes factos:
1. João
Relaxado possuía uma residência em Lisboa.
2. João
Relaxado trabalha como supervisor e fiscalizador da qualidade de produção da
INFARMED, I.P., nomeadamente de máscaras e testes ao COVID-19.
3. João
Relaxado procedeu a uma deslocação na quinta-feira santa, dia 9 abril de 2020,
durante o estado de emergência.
4. Foi
desenvolvida no dia 9 de abril de 2020 uma operação especial de fiscalização do
tráfego na Ponte 25 de Abril.
5. Jorge
Rigidez, superintendente e superior hierárquico de Manuel Precaução, agente da Polícia
de Segurança Pública, estava responsável pela coordenação da operação referida
no ponto 4.
6. A
deslocação dada como provada no ponto 3. foi feita com a mulher, os 3 filhos
menores, cão, gato e canário.
7. A
esposa de João Relaxado tem uma doença degenerativa.
8. A
deslocação tinha como destino uma fábrica no Algarve.
9. A
deslocação foi feita para desempenhar a sua atividade profissional.
10. João
Relaxado e Manuel Precaução são primos.
11. Existe
uma desavença entre estes relativamente à herança de uma tia.
12. Manuel
Precaução procedeu à fiscalização do veículo de João Relaxado, tendo comunicado
a situação ao superior hierárquico assim que teve conhecimento dessa
circunstância.
13. Manteve-se
a comunicação entre Manuel Precaução e Jorge Rigidez durante a fiscalização do
veículo automóvel de João Relaxado.
14. O
superintendente Jorge Rigidez ordenou que Manuel Precaução prosseguisse com a
operação de fiscalização da viatura, devido ao “caos da situação e à falta de
reforços”.
15. João
Relaxado não tinha a declaração
emitida e assinada pela sua entidade empregadora, pedida por Manuel
Precaução.
16. João
Relaxado tinha uma declaração assinada pelo próprio.
17. Manuel
Precaução solicitou a João Relaxado a apresentação da prova de pagamento do
imposto automóvel.
18. João
Relaxado tinha deixado em casa a prova de pagamento do imposto automóvel.
19. Manuel
Precaução cominou João Relaxado ao pagamento de uma coima por contraordenação.
20. A
cominação deveu-se à não apresentação da prova de pagamento de imposto
automóvel.
21. João
Relaxado recusou-se a pagar a coima.
22. Manuel
Precaução arrestou o veículo automóvel como garantia de pagamento, sob ordem do
superintendente.
23. Havia
uma ordem prévia do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa de arresto da
viatura automóvel.
24. Manuel
Precaução deu uma ordem de prisão relativa a João Relaxado, sob ordem do
superintendente, pela recusa do pagamento da coima, dada como provada no ponto
21.
25. Teve
de ser chamado um veículo especial para deficientes no valor 110 euros.
26. A
família teve custos diários com transportes públicos, em média de 20 euros por
dia.
27. João
relaxado não pode trabalhar durante três dias e foram subtraídos 100 euros por
cada um destes três dias ao seu salário.
28. A
casa onde habitavam em Lisboa foi vendida.
29. As
despesas com hotel e alimentação nos quatro dias em que não conseguiram aceder
a sua casa em Aljezur calcula-se em 150 euros por dia.
30. Aurora
Marques é superior hierárquica de João Relaxado e conseguiu passar a ponte no
dia 9 de abril, sem apresentar a declaração emitida e assinada pela sua entidade empregadora, mas
apenas o cartão do INFARMED, I.P., tendo também sido fiscalizada por Manuel
Precaução.
Consideram-se não
provados os seguintes factos:
- A esposa de João Relaxado não é autónoma e
precisa de assistência permanente.
- A contraordenação deveu-se ao
incumprimento das medidas de transporte de animais previstas no art. 56º do Código
da Estrada.
- João Relaxado apresentou o cartão de
trabalhador do INFARMED, I.P., a Manuel Precaução.
- Manuel Precaução agiu com intenção de
prejudicar João Relaxado.
As
questões a dirimir nos presentes autos reportam-se, unicamente, a questões de
direito, nomeadamente a de saber se a fiscalização do veículo, o impedimento da
passagem, a coima por contraordenação, o arresto e a detenção são válidas ou se
devem ser declarados nulos ou anulados.
No que concerne a este
pedido elaborado pelo A. relativo à demissão do R. e do seu superior
hierárquico, o tribunal esclarece que não é da sua competência a demissão de
agentes da Polícia de Segurança Pública, conforme decorre da lei nº37/2019, de
30 de maio, que aprova o estatuto Disciplinar da Polícia de Segurança Pública.
Procede-se,
então, à apreciação da validade e procedência dos pedidos, bem como das causas
de pedir, dos autores.
Fiscalização do veículo
automóvel do A. Pelo R.
O A. vem invocar que
existem sérias dúvidas da imparcialidade por parte do R. dada a relação de
inimizade entre os dois primos resultante das desavenças existentes.
O R., por sua vez, invoca
que se sanou o impedimento dada a permissão do superior hierárquico.
As questões colocadas
pelas partes relacionam-se com o princípio da imparcialidade, com consagração
no art. 9º do CPA e no art. 266º nº2 da CRP. O primeiro dos referidos artigos
dispõe que “A Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que
com ela entrem em relação, designadamente, considerando com objetividade todos
e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando as soluções
organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção
administrativa e à confiança nessa isenção”.
Os casos de impedimento e
de escusa e suspeição previstos no CPA nos artigos 69º e seguintes constituem
garantias de imparcialidade.
É de considerar o
argumento invocado por A., uma vez que resulta do art. 73º nº1 CPA que um agente
da Administração Pública, encontrando-se no exercício de poderes públicos, deve
“pedir dispensa de intervir no procedimento (…) quando ocorra circunstância
pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da
sua conduta ou decisão”. Nos termos das alíneas a) e d) do art.73º nº1 CPA
estamos perante um caso de escusa e suspeição.
Contudo, conforme invoca
R., nos termos do art. 74º nº1 CPA o pedido deve ser dirigido à entidade
competente para dele conhecer. Nos termos ainda do nº4 desse art., “os pedidos
devem ser formulados logo que haja conhecimento da circunstância que determina
a escusa ou a suspeição”. Como consta do ponto 12. dos factos provados, tal
ocorreu. O art. 75ºnº1 CPA remete para o art.70º nº4 do CPA, nos termos do qual
“Compete ao superior hierárquico (…)
conhecer da existência do impedimento e declará-lo, ouvindo, se
considerar necessário, o titular do órgão ou agente”.
Nos termos do ponto 14.
dos factos provados, o superior hierárquico decidiu pela continuação da
fiscalização por parte do R. ao veículo automóvel do A.
Ainda que o superior
hierárquico decida que a decisão de escusa e suspeição não é procedente, há que
atender ao disposto no art. 76º nº4, o qual estipula que: “A falta ou decisão
negativa sobre a dedução da suspeição não prejudica a invocação da anulabilidade
dos atos praticados ou dos contratos celebrados, quando do conjunto das
circunstâncias do caso concreto resulte a razoabilidade de dúvida séria sobre a
imparcialidade da atuação do órgão, revelada na direção do procedimento, na
prática de atos preparatórios relevantes para o sentido da decisão ou na
própria tomada da decisão.”. Na sequência deste art., pode A. invocar ainda a
anulabilidade dos atos praticados por R.
Cabe então ao presente
tribunal aferir, em função das circunstâncias do caso concreto, se existe dúvida
séria sobre a imparcialidade da atuação de R.
Tal como resulta dos
factos provados nos pontos 12., 13., 14., 22., 24., há que lembrar que houve
uma comunicação constante entre R. e o seu superior hierárquico, que R. relatou
imediatamente o caso de escusa e suspeição ao superior, que este último deu
ordem para que prosseguisse a fiscalização e que foi o superior hierárquico que
emanou as principais ordens que viriam a lesar o particular, o tribunal conclui
que, apesar da relação de parentesco e de inimizade entre os dois, ainda assim,
não existe dúvida séria de imparcialidade relativa à conduta de R.
Conclui o tribunal que R.
poderia fiscalizar o veículo automóvel de A. e que, assim, o ato não é ilegal.
Impedimento da passagem
O A. vem invocar que não
seria necessária a apresentação da declaração da entidade empregadora que
ateste que se encontra no desempenho das respetivas atividades profissionais,
por A. ser um trabalhador de instituição de saúde, INFARMED, I.P, com base nos artigos
4º e 6º do decreto 2-B/2020. Alega ainda a violação do princípio da igualdade.
O R., por sua vez, alega
que A. e a sua família não poderiam deslocar-se para fora do concelho e que,
ainda que o A. o pudesse fazer, seria necessária a declaração emitida e assinada pela sua
entidade empregadora, nos termos do art. 6º do decreto 2-B/2020.
Este tribunal considera
que, tendo em conta que A. é responsável pela supervisão e fiscalização da
qualidade de produção do INFARMED, I.P., A. é considerado um trabalhador de uma
instituição de saúde para efeitos do art. 4º nº4 do decreto 2-B/2020.
Nos termos do art. 6º nº2
do decreto 2-B/2020 A. poder-se-ia deslocar entre concelhos.
O tribunal considera
ainda que a necessidade da declaração da entidade empregadora mencionada no art.
6º nº3 se refere apenas à última parte do número anterior, isto é, aos
trabalhadores das atividades profissionais admitidas pelo decreto.
Assim, conclui-se que A.
não necessitava de apresentar a declaração da entidade empregadora perante R.
para poder deslocar-se até ao Algarve.
Contudo, apesar de poder
deslocar-se entre concelhos, seria necessária a apresentação do cartão de
trabalhador do INFARMED, I.P., o que consta do ponto 3. dos factos não
provados. Assim, o tribunal conclui que R. não teria de permitir a passagem do
A.
Ainda assim, considerando
a alínea t) do art. 5º nº1 do decreto 2-B/2020 seria possível a deslocação
desta família para o Algarve por “motivos de força maior ou necessidade
impreterível”. Apesar de nos termos do art. 6º nº1 não ser possível circular
para fora do concelho de residência habitual, o tribunal considera que, pelo
motivo do A. e a sua família já não possuírem residência em Lisboa, mas sim no
Algarve, se trata de uma “urgência imperiosa”. Neste sentido aponta-se o dever
geral de recolhimento domiciliário previsto no art. 5º do referido decreto. O
A. e a sua família poderiam, então, deslocar-se para a sua residência no
Algarve.
O tribunal conclui que a
recusa por parte de R. relativa à passagem de A. constitui um ato ilegal, pelo
que não há lugar à análise do princípio da igualdade.
Coima por contraordenação
O A. alega que o R. não
tem competência para pedir apresentação da prova de pagamento do imposto
automóvel. Invoca ainda que esse documento não consta da lista de documentos de
que o condutor deve ser portador, nos termos do art. 85º do Código de Estrada.
O R. invoca que a coima
teve como fundamento o transporte inapropriado dos animais, o que consta do
ponto 2. dos factos não provados.
É de considerar que de
acordo com o disposto no art. 85º do Código da Estrada o documento exigido pelo
R. – prova de pagamento do imposto automóvel – não tem de estar na posse do
condutor.
Mais considera o tribunal
que pedir a apresentação da prova de pagamento do imposto automóvel e cominar o
A. ao pagamento de uma coima por contraordenação com fundamento nessa falta de
prova não consta das atribuições previstas no art. 3º da lei orgânica da Polícia
de Segurança Pública (Lei nº53/2007, de 31 de agosto).
O tribunal conclui que o
ato praticado pelo R. é ilegal, sendo, por isso, nulo nos termos do art. 161º
nº2 alínea b) do CPA.
Arresto
O A. invoca que
o arresto, nos termos dos art. 179 nº1 do CPA e dos artigos 136º nº1 e
214º do Código de Procedimento e Processo Tributário, deve ser requerido por
um representante da Fazenda Pública. Assim sendo, o agente da Polícia de Segurança
Pública não só não tinha qualquer competência para proceder ao requerimento do
arresto, uma vez que é estranho ao ministério da Fazenda Pública e não é seu
representante, como muito menos ainda para o aplicar naquele preciso
momento, uma vez que só tem competência para proferir a ordem de arresto o
tribunal competente.
O R. afirma haver uma ordem de
arresto do tribunal, pelo que estaria a agir em conformidade com a sentença.
Além disso, cumpria também ordens do superior hierárquico, tendo um dever de
obediência e, não constituindo a ordem de arresto do veículo um crime, o R.
teria de cumprir essa ordem.
O Tribunal
considera procedente o argumento do A. em como, nos termos do art. 179º nº1 do
CPA, na falta de pagamento voluntário no prazo fixado, segue-se o processo de
execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário, não
sendo admissível o arresto por parte do R., por falta de competência. Tal
decorre do art. 136º nº1 do Código de Procedimento e Processo Tributário, que estipula
que é o representante da fazenda pública que pode requerer arresto, e do 138º
do mesmo Código que determina que é o tribunal tributário que tem competência
para o arresto.
Relativamente ao argumento invocado
pelo R. da existência de uma ordem de arresto. Contudo, conforme provado no
ponto 23., o tribunal que proferiu essa ordem de arresto foi o Tribunal
Judicial da Comarca de Lisboa. Conforme dispõe o art. 138º do Código de Procedimento
e Processo Tributário, “Tem competência para o arresto o tribunal tributário de
1.ª instância da área do domicílio ou sede do executado.” O Tribunal Judicial
da Comarca de Lisboa não tinha competência para proferir essa ordem de arresto.
Contudo, o
R. invoca também que estava a agir sob ordens do superior hierárquico. Resulta
do 14º nº1 e nº2 alínea b) do Estatuto Disciplinar da Polícia de Segurança
Pública o dever de obediência. Contudo, conforme decorre do art. 271º CRP nº2,
“É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que atue no cumprimento
de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria
de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua
transmissão ou confirmação por escrito.” Assim sendo, ainda que não se trate de
um crime (sendo que nestes casos cessa o dever de obediência conforme dispõe o
art. 271º nº3 CRP), uma vez que da ação do R., praticada no exercício das suas
funções, decorre uma violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos
dos cidadãos, este deveria ter reclamado da ordem emanada, pedido a sua
transmissão ou confirmação por escrito. Como não o fez, então deverá ser responsável
por essa ação.
O tribunal conclui que o ato
praticado é ilegal, sendo nulo, por isso, nos termos do art. 161º nº2 alíneas a)
e b) do CPA.
Detenção
O A. alega que não incorreu em qualquer crime de
desobediência. A detenção ocorreu na sequência da recusa de pagamento da coima.
Nos termos do art. 348º do Código Penal é necessária que haja uma falta de
obediência a uma ordem legítima e que o agente fosse autoridade competente.
Segundo o A. nenhum dos requisitos se encontra preenchido. Mais alega que podia
exercer o seu direito de resistência, uma vez que o R. é uma autoridade
incompetente na matéria relativa ao pagamento da coima.
O R. sustenta que, nos termos do art. 348º do Código Penal,
estão reunidos os pressupostos para a detenção por crime de desobediência.
De acordo com o art. 348º do Código Penal, invocado por
ambas as partes,
“1 - Quem faltar à obediência devida a
ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade
ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de
multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”
Esta norma estabelece 2 requisitos: por um lado, que a
ordem seja legítima e, por outro, que seja regularmente comunicada e emanada de
autoridade ou funcionário competente.
Ficou provado, no ponto 24. dos factos provados, que a
detenção surgiu na sequência da recusa do pagamento da coima.
Como referido supra, o R. não dispunha de competência para cominar
o A. ao pagamento de uma coima, pelo que a ordem não é legítima e não se trata
da entidade competente.
Assim sendo, o
tribunal conclui que o A. não incorreria num crime de desobediência por não
estarem preenchidos os pressupostos do art. 348º do Código Penal.
Relativamente ao
direito de resistência, o decreto 2-B/2020 refere que “a desobediência e a
resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em
violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei
penal (…)”. Não estando em causa uma ordem legítima, nem entidade competente e
não sendo a resistência praticada em violação do disposto no mencionado
decreto, o tribunal considera que o A. podia exercer o seu direito de
resistência.
O R. invoca
também que estava a agir sob ordens do superior hierárquico. Conforme exposto
supra, ainda que não se trate de um crime (sendo que neste caso, cessa o dever
de obediência conforme dispõe o art. 271º nº3 CRP), uma vez que da ação de R.,
praticada no exercício das suas funções, decorre uma violação dos direitos ou
interesses legalmente protegidos dos cidadãos, este deveria ter reclamado da
ordem emanada, pedido a sua transmissão ou confirmação por escrito. Como não o
fez, então deverá ser responsável por essa ação.
O tribunal conclui que o
ato praticado por R. é ilegal, sendo, por isso, nulo nos termos do art. 161º
nº2 alínea d) do CPA.
Por fim, o A. vem invocar
uma violação grave e desproporcional do direito fundamental ao trabalho. No
estado de emergência vigorava o dever geral de recolhimento domiciliário, sendo
uma das exceções, prevista no art. 5º nº1 alínea b) do decreto 2-B/2020, a
deslocação para desempenho das atividades profissionais. Nos termos do art. 6º
do referido decreto, são proibidas as deslocações para fora do concelho de
residência habitual, durante o período da Páscoa. Contudo, no caso de
trabalhadores de instituições de saúde como o A. seria possível circular entre
concelhos sem a apresentação da declaração emitida e assinada pela sua entidade empregadora.
O princípio da
proporcionalidade está previsto no art. 7º do CPA. A proporcionalidade
corresponde à necessidade, adequação, proporcionalidade em sentido estrito (ou
seja, a não lesão excessiva dos interesses do particular).
O tribunal considera que
esta medida não viola desproporcionalmente o direito ao trabalho, uma vez que é
necessária para assegurar a saúde pública, que é adequada a esse fim e que não
lesa excessivamente os interesses do particular, permitindo-lhe, ainda assim,
trabalhar.
Contudo, a aplicação da
coima, o arresto da viatura automóvel do A. e a sua detenção violam
desproporcionalmente o direito fundamental ao trabalho do A., uma vez que, se
por um lado, não havia motivos legítimos subjacentes às 3 atuações indicadas,
por outro, tal acabou por se repercutir no A., que perdeu parte do seu salário
em consequência de não ter comparecido no trabalho, o que só ocorreu devido a
estas atuações. Assim, o tribunal considera que as referidas atuações não são
necessárias nem adequadas, uma vez que não existe um fim legítimo que essas
atuações pretendam prosseguir, lesando excessivamente os interesses do
particular. Deste modo concluímos que, neste aspeto, existe uma violação do
princípio da proporcionalidade.
Indemnização
Por fim, relativamente ao
pedido de indemnização feito pelo A., esta tem o valor de 101, 680€, 100,000€
em danos não patrimoniais e 1,680€ em danos patrimoniais. O tribunal considera
a indemnização dos danos patrimoniais procedente. Contudo, relativamente à
indemnização por danos não patrimoniais, o tribunal considera que 100,000€ de
indemnização por danos não patrimoniais não é razoável, fixando a indemnização
total em 10,000€.
IV-Decisão
Nestes
termos e com fundamento no supra exposto, julga-se parcialmente procedente a
presente ação, por fundamentada e provada, no referente ao impedimento da
passagem do A. pelo R., da aplicação da coima por contraordenação, do arresto, da
detenção de A. e a indemnização pedida pelo A. Concluindo-se pela não
procedência, por falta de fundamentação de prova, no respeitante à falta de
imparcialidade do R. na fiscalização da viatura do A. Em consequência
condena-se o réu nos pedidos julgados procedentes.
***
Custas a suportar pelo R. (cfr. Art.º
527º 1/2 CPC aplicável "ex vi" art.º 1º/ CPTA).
***
Registe e notifique.
***
Lisboa, 19 de maio de 2020
Os Juízes de Direito,
Ana Catarina Oliveira
Inês Alves
Inês Oliveira
Maria Pires
Raquel Alcobia
Raquel Paramés
Vítor Oliveira
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